Nos últimos anos, o governo brasileiro colheu elogios no mundo inteiro pela distribuição gratuita de remédios para o tratamento de aids e a opinião pública acostumou-se a ver o programa nacional de combate à doença como uma rara ilha de eficiência em meio ao caos da saúde pública no país. Sempre que ouve os amigos reproduzirem esse tipo de comentário, no entanto, a psicóloga Regina Cohen inicia uma explicação pausada e cheia de ponderações.

"A fama internacional e a crescente sobrevida dos pacientes, em condições razoavelmente saudáveis, levaram o programa a relaxar", afirma Regina, uma sorridente soropositiva de 55 anos, que há oito contraiu o vírus HIV ao relacionar-se com ex-namorados. Em meados de fevereiro, ela completou um mês tentando retirar, sem sucesso, a dose mensal do anti-retroviral Ritanovir num hospital público de Brasília. O remédio faz parte do coquetel de quatro medicamentos que Regina precisa tomar todos os dias, mas a resposta do hospital foi a mesma por semanas: estava em falta.

A situação vivida pela psicóloga ainda é pouco comum, mas pode ser um dos primeiros indícios de que o programa brasileiro de aids tornou-se vítima do próprio sucesso. Ele chegou à adolescência e está diante de uma encruzilhada inédita. O número de soropositivos beneficiados não pára de crescer, hoje os pacientes têm sobrevida maior, a resistência ao vírus aumentou ao longo do tempo e foram surgindo novas drogas. Elas têm menos efeitos colaterais e são mais potentes, mas estão protegidas por patentes e custam mais caro.

Pela primeira vez desde que o programa adotou a distribuição universal de medicamentos, seus custos aumentaram substancialmente. Em 1998, por exemplo, a compra de remédios usados no coquetel custava mais de US$ 5 mil por paciente-ano. Desde então, em boa parte por causa da decisão de produzir genéricos para compor a terapia anti-retroviral, os gastos despencaram e chegaram a US$ 1,3 mil por paciente-ano em 2004. No ano passado, esse valor cresceu para US$ 2,5 mil.

Em 2006, o orçamento para a aquisição de anti-retrovirais vai romper a cifra de R$ 1 bilhão também pela primeira vez. Em suma, a sustentabilidade do programa está mais em jogo do que nunca. Esse diagnóstico colocará o próximo presidente da República diante de uma situação em que há três cenários possíveis: quebrar patentes e baixar o custo de compra dos remédios (com os riscos de sofrer represálias comerciais), aumentar drasticamente os recursos disponíveis (com os riscos de ter um programa que não cabe dentro do Estado brasileiro) ou diminuir a sua abrangência (com os custos políticos e sociais que isso implica).

As despesas do governo têm aumentado por vários motivos. Todos os anos, cerca de 15 mil novas pessoas entram em tratamento na rede pública. É quase impossível saber se acabaram de contrair o vírus HIV ou foram infectadas há muito tempo e só agora começaram a sentir sintomas da doença.

Há três anos as metas definidas pelo Ministério da Saúde para a distribuição de preservativos são descumpridas, mas o governo aposta na segunda explicação e garante que os números da aids no país estão estáveis em 600 mil soropositivos desde 2000. Seja qual for o motivo do crescimento no total de atendidos, são necessários remédios cada vez mais modernos para combater o vírus de forma eficaz. Uma pessoa que é contaminada hoje herda boa parte da resistência que o transmissor acumulou aos medicamentos a que foi submetido.

"O vírus está cada vez mais resistente e a complexidade do tratamento fica cada vez maior", diz a médica infectologista Eliana Bicudo, doutora pela UnB e especialista em aids. Se uma pessoa já é portadora de HIV e for contaminada novamente, assumirá a resistência também do novo vírus incorporado ao organismo.

Além disso, os médicos estão preferindo receitar sempre os remédios mais novos. No coquetel de anti-retrovirais, o Endinavir (genérico) e o Kaletra (patenteado) têm a mesma função, mas o segundo evita efeitos colaterais como cálculo renal, unhas encravadas, queda de cabelo e escurecimento da pele, afirma Eliana.

Remédios de primeira geração custam de US$ 38 a US$ 531 por ano, em média, mas o preço sobe para US$ 252 a US$ 1.515 no caso dos medicamentos de segunda geração. Sete dos 15 anti-retrovirais do coquetel de aids são genéricos e isso baixa os custos de aquisição. Mas o espaço legal para a fabricação nacional de medicamentos modernos diminuiu.

Em 1994, como resultado da Rodada Uruguai de liberalização comercial, foi assinado um acordo global de propriedade intelectual (Trips, na sigla em inglês). Aos países em desenvolvimento foi dado prazo de dez anos para o estabelecimento de leis nacionais de patentes. O Brasil adotou essa legislação em 1997. Todos os remédios descobertos pelos laboratórios estrangeiros antes daquele ano podiam ter as patentes quebradas sem maiores conseqüências. É nesse caso que se enquadram todos os anti-retrovirais genéricos fabricados no país. Mas agora ficou mais difícil quebrar patentes - e os remédios protegidos por elas são justamente os mais caros.

As ONGs acham que é necessário peitar as multinacionais. "Cerca de 60% dos gastos do programa vão para a aquisição de apenas três medicamentos patenteados - o Kaletra, o Efavirenz e o Tenofovir", diz Mário Scheffer, do Grupo pela Vidda, de São Paulo. O Kaletra, fabricado pelo laboratório americano Abbott, foi alvo de um acordo no ano passado com o governo brasileiro. O custo da cápsula caiu de US$ 1,17 para US$ 0,63.

O Brasil se comprometeu a não quebrar a patente do Kaletra e a não alterar as cláusulas do contrato até 2011, mas o acerto tem eficácia duvidosa. Normalmente o preço de um remédio cai 70% em cinco anos. Ou seja, o valor do Kaletra cairia de qualquer jeito, afirmam os críticos do acordo.

Como ameaça, a estratégia de quebrar patentes já forçou algumas reduções ocasionais dos preços. Colocada em prática, tem o potencial de gerar uma escalada de conflitos comerciais. Fontes do governo brasileiro dizem que a embaixada em Washington já recebeu diversos alertas da Casa Branca de que podem surgir represálias a produtos brasileiros, na forma de revisões do Sistema Geral de Preferências (SGP), que dá benefícios tarifários ao país.

O diretor do programa nacional de aids, Pedro Chequer, diz que o caminho para preservar a abrangência da distribuição gratuita de anti-retrovirais é a quebra de patentes. "O programa só é sustentável no médio e longo prazos, com o perfil que ele tem, se houver produção nacional de medicamentos", argumenta Chequer.

Até que ponto esse tipo de estratégia pode dar certo é uma incógnita. Os países em desenvolvimento ainda respondem por uma parcela pequena do faturamento dos laboratórios estrangeiros, mas é nessas regiões que as perspectivas de crescimento são maiores. "Os medicamentos para tratar HIV/Aids competem por financiamento à pesquisa com outras doenças em que não há ameaças aos direitos de propriedade intelectual", dizem os pesquisadores Richard Tren e Roger Bate, do American Enterprise Institute for Public Policy Research, em estudo sobre o programa brasileiro, divulgado em janeiro.

Completa um executivo de uma grande multinacional ouvido pelo Valor: "De cada mil moléculas que investigamos, apenas uma gera um produto farmacêutico. E de cada dez produtos farmacêuticos, só três são rentáveis. Haverá incentivos para mais pesquisa com quebra de patentes?"

Daniel Rittner

Fonte: Valor online
http://www.valoronline.com.br/veconomico/caderno/?show=index&mat=3603405&edicao=1315&caderno=83 (external link)